Tilt: Tire essas patas sujas do meu game single player!

Tilt é uma seção recorrente deste blog onde matuto um pouco sobre as tendências atuais que mais me incomodam no mundo dos games, como certos mitos de design que se perpetuam desnecessariamente. Se um determinado jogo adotou um recurso só porque está na moda, é aqui que irei comentar – ou melhor dizendo, reclamar.

Tilt do momento:

“Não tem modo online, e por isso não é tão bom quanto poderia ser”.

“Não tem modo online”. “Não tem multijogador pela Internet”. “Não dá para jogar online”. Com certeza você já cansou de ver essa reclamação por aí – se não a usou você mesmo. E, em alguns casos, ela faz sentido. Mas será que ultimamente não estamos passando dos limites ao exigir este recurso?

EyePet (PS3)Só como exemplo, uma revista brasileira de Playstation 3 lançada em setembro estampou esta exigência mais de uma vez. Porém, a quantidade foi o de menos – a coisa saiu do controle mesmo quando um autor cobrou modo multijogador online para EyePet. Sim, você leu direito: EyePet, de todos os games. Pior: a cobrança por multijogador recebeu até um quadro à parte, com frases como “[a falta de um multijogador online] é uma senhora falha“.

Uma “senhora falha” em… EyePet.

Nada contra EyePet, nem contra a criatividade. Eu mesmo consigo imaginar algumas maneiras nas quais os bichinhos virtuais poderiam interagir (nada disso que você está pensando, espertinho). Os minigames poderiam ser jogados em dupla, por exemplo, ou os bichinhos virtuais poderiam “passar o dia” na “casa” de outro dono de EyePet.

Mas, caramba, é de EyePet que estamos falando.

EyePet (PS3) se divertindoO propósito do game é criar um bichinho virtual para crianças e adultos solitários poderem brincar na frente de uma câmera, posicionada o mais próximo possível do chão. Por mais que a interatividade acrescente a um game, certas coisas simplesmente são feitas para serem aproveitadas sozinho, e não há nada de errado ou falho nisso. Quem tem um bicho em casa pode até levá-lo para passear e interagir com outros, mas todo o sentido de cuidar do animal é ter uma companhia para você.

Ainda por cima, há o lado técnico. EyePet transmite a imagem captada pela câmera Playstation Eye quase o tempo todo, e isso consome recursos. Fazer com que os bichos interajam pela internet com dois ou mais sinais de câmera ao fundo poderia ser problemático, tanto na questão de tráfego de dados quanto de tempo de resposta, que iria variar demais de acordo com a conexão que cada um tivesse. Com isso, só os minigames que prescindem da imagem da câmera poderiam ser transmitidos sem grandes problemas. Isto é, um modo multijogador online em EyePet provavelmente seria bastante limitado em relação ao jogo principal; e se for só por alguns minigames, para quê dedicar recursos a servidores caros e que exigem manutenção constante?

E o mais importante de tudo: CARAMBA, É EYEPET.

Dando porrada na máquina

Counter-Strike (PC)Vou ser direto: por mais que esperneiem, peçam, exijam ou chorem, somente três gêneros de games realmente perdem muito se não tiverem modo multijogador online:

  1. Jogos de tiro em 1ª pessoa
  2. Jogos de esportes (luta, corrida, futebol, hóquei, basquete etc.)
  3. Games com mundos persistentes (MMOs e afins como APB) ou de conteúdo compartilhado (Little Big Planet, ModNation Racers)

Os jogos de tiro se beneficiam muito porque, por melhores que sejam os modelos de inteligência artificial (IA) nos games de hoje, nenhum deles se compara à imprevisibilidade humana; como nestes jogos a única atividade que importa é combater inimigos, faz toda a diferença poder contar com esta imprevisibilidade. Nos jogos de esportes, além da questão da IA, ainda há o senso de competição que tais esportes proporcionam – algo que fica muito mais natural quando se compete com uma pessoa de verdade. Os casos dos MMOs e afins, por sua vez, são auto-explicativos.

Qualquer game que não se encaixe nestas categorias não tem obrigação nenhuma de ter modo multijogador online.

Logotipo de Bioshock Infinite (PC/PS3/X360)Sim, alguns o fazem assim mesmo, e muito bem. Isso acontece porque os conceitos individuais destes jogos permitem inovações formais no modo multijogador; ainda assim, eles são a absoluta minoria – e no final das contas, o modo encarece a produção do game e se intromete no resultado final. Ken Levine, responsável pelo futuro Bioshock Infinite, definiu a questão muito bem quando perguntado se o game teria modo multijogador:

Estamos experimentando, mas nunca estivemos interessados em fazer um modo multijogador que você possa jogar em algum outro game – porque a) não é interessante em termos criativos e b) em termos financeiros, você está perdendo tempo. Eles irão jogar Halo. Eles irão jogar Call of Duty.

Se fizermos algo novo – algo como Left 4 Dead, que tinha alguma coisa a dizer – as pessoas virão ao seu jogo. Senão, não perca seu tempo.

The Darkness (PS3/X360)Na verdade, Levine ainda está sendo otimista – há diversos games com modos multijogadores pouco convencionais e que mesmo assim não estão sendo jogados online (The Darkness vem à mente, e até mesmo Demon’s Souls fica vazio em determinados dias e horários).  Logo, reforço a afirmação dele para os desenvolvedores: não percam seu tempo.

Criar um modo multijogador já demanda muito tempo e dinheiro na fase de produção do game, mas o problema mesmo são os custos depois do game lançado. Dar suporte ao modo para um jogador – com, digamos, patches e conteúdo extra – exige apenas investimentos isolados e finitos, já que o material fica disponível através das redes dos consoles (PSN e XBLA). No modo multijogador, você tem os mesmos tipos de investimentos na produção, mas ainda precisa manter por tempo indeterminado os servidores online. Não é à toa que diversas produtoras maiores estão adotando o Online Pass: manter cinco milhões de usuários jogando, como relata a EA Sports, tem seu custo, e cobrar daqueles que adquiriram games de segunda mão é menos radical do que cobrar de todo mundo (ainda mais quando a Microsoft já o faz em seu console).

"No Gods or Kings, Only Men" - Bioshock (PC/PS3/X360)Além do mais, há a questão conceitual. Bioshock é uma experiência narrativa única em 1ª pessoa muito antes de ser um jogo de tiro competitivo, e portanto não precisa realmente de um modo multijogador. Percorrer os corredores de Rapture, o cenário do jogo, somente procurando inimigos para derrotar é algo totalmente contrário ao espírito da narrativa: descobrir o que diabos está acontecendo naquela estranha cidade submersa. Embora nenhum jogador seja obrigado a sequer entrar no modo multijogador, ele ainda consome recursos, como dito acima – e se isso já é ruim quando o modo multijogador não oferece nada de novo, é ainda pior se tal modo deturpa a experiência original do game.

Portanto, se for para incluir mais um modo multijogador com deathmatch e Capture a bandeira em uma mera aventura em 3ª pessoa só porque há armas de fogo, faça-me o favor de tirar estas patas sujas deste game para um jogador e vá procurar outra coisa para emporcalhar, por favor.

Voltando a funcionar

Fucking Camper!Isso tudo considerado, me espanta que até agora nenhuma desenvolvedora/editora de games não tenha feito marketing em cima do fato de um game não ter modo multijogador. Pense bem: quantas vezes você já não leu alguém reclamando da atitude de adversários online? Sejam eles trapaceiros, campers, moleques mal-educados ou gente que está lá só para atrapalhar, o fato é que modos multijogador costumam ser um grande viveiro com todo tipo de comportamento imbecil humano. Neste contexto, um game em que o personagem principal é o único que pode salvar o mundo, ou resolver um mistério, ou sobreviver a um evento horripilante deveria estampar em letras garrafais na contracapa: “só você, e ninguém mais para atrapalhar“.

Além disso, existem outras áreas no desenvolvimento de videogames que ainda precisam de mais atenção e avanço para que alcancem o mesmo nível de excelência já atingido em capacidade gráfica e de processamento: roteiros, por exemplo. Bons roteiristas cobram caro, e os games atuais ainda estão em um estágio de apuro de enredo similar às séries de TV dos anos 70 – aquelas que chamávamos de “enlatados”. Isto é, são roteiros divertidos e com boas ideias isoladas… Porém, salvo exceções, eles ainda passam longe da riqueza de séries de TV modernas como A Sete Palmos, Família Soprano, Deadwood, Carnivàle ou Lost. Não é coincidência que (quase?) todas as exceções à regra do roteiro-enlatado, como Heavy Rain ou boa parte da franquia Silent Hill, sejam games sem multijogador.

Tela de Fallout 3 (PC/PS3/X360)Por fim, há espaço para todo tipo de público. Assim como seria muito chato se houvesse somente games para apenas um jogador, também é bem limitante termos uma maioria absoluta de jogos desenvolvidos para multijogador. Equilíbrio é sempre bom, e no fundo todos sabem disso; basta reparar como certos jogos nunca foram cobrados por não terem multijogador, como os games de survival horror, ou mesmo outros em que seria viável fazê-lo, como Fallout.

E aí, eu pergunto a vocês: que games deveriam ter vindo sem multijogador, e quais games poderiam ter vindo com o modo mas estranhamente nenhum jornalista pediu tal coisa? Estou curioso para saber como os gamers brasileiros, que em geral têm menos acesso a banda larga e à jogatina online, se posicionam quanto ao assunto. Fiquem à vontade para comentar!

9 comentários sobre “Tilt: Tire essas patas sujas do meu game single player!

  1. Existe outro gênero que é sinônimo de multiplayer: RTSs (real time strategy games). Nem call of duty tem uma comunidade tão dedicada quanto os grandes RTSs, a battle.net da Blizards é melhor organizada e mais populosa que qualquer outro servidor do mundo dos games. Sem contar que o multiplayers dos RTS se tornaram tão populares na ásia que os grandes jogos e campeonatos passaram a ser televisionados.

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    • Ah, ótima lembrança. Mea culpa, não jogo RTS desde o primeiro Starcraft, então acabou passando batido. Acho que podemos considerar os RTS como algo que cai na mesma categoria dos jogos de esportes, em termos de ênfase na competição: todo o conceito do gênero depende de competição direta, e competição sempre fica melhor contra outros oponentes humanos em vez de uma AI.

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  2. Hoje mesmo eu estava lendo um texto que reflete sobre o porquê de Enslaved não ter vendido como o esperado e um dos possíveis motivos levantados era justamente a falta de multiplayer…

    http://www.guardian.co.uk/technology/gamesblog/2010/nov/02/enslaved-sales-flop-but-why

    Fiquei chateada lendo isso, pois Enslaved é um jogo tão rico em vários aspectos. =(

    Realmente estamos numa época em que ter modo multiplayer tornou-se praticamente uma exigência, e não ter virou defeito. Acho uma pena games super bem executados serem desvalorizados por causa disso. Sou um pouco suspeita pra falar, por ser uma single-player inveterada (nunca fui muito fã de multiplayer online), mas acredito sim que há muitos jogos que não precisam de multiplayer.

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    • Cara, o pior é que eu jogo certos games multiplayer numa boa, adoro a existência deste modo e nunca desejaria que as coisas voltassem a ser como antes nesse sentido. Mas caramba, EYEPET 😀 Não, falando sério, tem jogo que NÃO PRECISA. O povo exagera. Enslaved não precisa. Vanquish não precisa (embora caísse bem nele).

      Ao mesmo tempo, por algum motivo misterioso nego só aplica isso a certos jogos. O novo Castlevania também não tem, mas ninguém reclama. Fallout 3. God of War! Por que isso? Não entendo.

      Edit: Li a matéria. O cara acerta na mosca em algumas coisas. Mas quer saber? Acho que no caso de Enslaved o problema é maior do que a falta de multiplayer (que também colabora). O “problema” dele é algo que pretendo destrinchar qualquer dia desses aqui no blog, e que já mencionei por algo na página do Facebook: no fundo, no fundo, gamers não querem uma boa história em jogos de ação.

      Basta ver como o próprio roteirista do jogo, apesar de ter feito o roteiro de dois filmes de sucesso (A Praia e Extermínio) e com temas próximos do que se veria em um videogame, passou anos tentando entrar no mercado por pura paixão e só agora, com Enslaved, foi contratado. E os estúdios de games, bem ou mal, são tocados por típicos gamers.
      http://www.next-gen.biz/features/interview-alex-garland-part-one

      Isso é triste, triste. Pelo menos parece que está mudando, com o uso de livros/quadrinhos menos corriqueiros como base de roteiros (The Darkness, Metro 2033) e de roteiristas PROFISSIONAIS de cinema e outras mídias (Homefront, da THQ, também usou um). Agora é esperar para ver se os gamers continuam reagindo de maneira bitolada.

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